deus na estrada do chofer paraibano

sofia isbelo
3 min readNov 26, 2021

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amanheceu na estrada e eu amanheci junto. meus olhos se perdem: no balanço das árvores, à procura por capelas de beira de caminho, o verde se transformando em marrom ao passo que adentro o interior… até que se encontram no caminhão pipa que anda em nossa frente: um grande letreiro DEUS me cumprimenta. as letras brancas, as bordas vermelhas, o fundo azul. a mensagem na lona que quase parece uma saia, quase como um véu de noiva, anunciando a personalidade do caminhoneiro que só conhecemos através das frases que nos deixam. DEUS.

qual será o nome que se dá à esta parte do caminhão? não conheço. pesquiso e descubro que as mensagens são inspiradas em algo chamado filateado, uma técnica argentina. ainda não sei qual o nome que se dá ao véu de noiva. não sei se um dia descobrirei.

caminhões trabalham na sua própria lógica. eu gosto de como suas placas são personalizadas… aquela que passou parecia uma grande ode à agosto. outra trazia em cima: “chofer paraibano”. é assim que o caminhoneiro se sente? um chofer? pesquiso a definição de chofer e o google me responde que significa motorista. em francês parece ainda mais exploratório. quase como se tivesse sido combinado, maria moita toca no ouvido, um sussurro à direita: vou pedir ao meu babalorixá, pra fazer uma oração pra xangô, pra por pra trabalhar gente que nunca trabalhou…

o caminhão-pipa faz uma ultrapassagem perigosa e quem dirige ao meu lado se assusta, diminuindo a velocidade caso algo dê errado, mas não dá. DEUS.

DEUS novamente, pois o caminhão que se encontra agora na nossa frente traz a mesma mensagem, mas a lona é preta e está surrada e as letras estão escritas em um nítido spray amarelo. trabalho de uma vez só. um véu da noiva cadáver. será que deus se importa com a quantidade de esforço colocada para homenageá-lo? ou será que não importa? será que importa o ser humano? é tanto caminhão na estrada, é tanto caminhoneiro sem direito ao nome. chofer paraibano. ainda consigo ver a ponta das letras garrafais brancas, ainda mais distante, e se afastando cada vez mais. e mais. e mais. até que curva no horizonte, à esquerda, e some.

será que todos os caminhões trazem deus? começo a querer ver os véus dos que fogem do altar em direção contrária. meu pescoço vira rapidamente, tentando acompanhar, e volta ao lugar ao perceber que não consigo. mas tento de novo. o vermelho desbotado. o cinza com um jesus cristo adesivado na frente. quantos caminhões passaram por mim, onde os choferes paraibanos, ou pernambucanos, ou sergipanos, ou…ou…

sucata boa esperança, uma casa aberta e branca, perto o suficiente da beira da estrada pra ver os dois letreiros que anunciam a atividade: um em vermelho, na lateral da casa, se apagando pelo sol direto de todas as manhãs; outro, preto e na sombra, recepciona na porta do estabelecimento. sucata boa esperança — não a teria visto, se não tentasse decifrar a personalidade de quem eu nunca vi o rosto, nem provavelmente verei. a incerteza angustia, e eu sei que não só a mim. será que é por esperança? um caminhão parado na entrada me responde com seu próprio véu: proteção.

resta saber se é da estrada ou do patrão.

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sofia isbelo

paraibana. poeta. comunicadora (em formação). de axé e em constante retomada de mim mesma.